segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Carta do Papa João Paulo II às Famílias Monfortinas sobre a Doutrina do seu Fundador

CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II ÀS FAMÍLIAS MONFORTINAS SOBRE A DOUTRINA DO SEU FUNDADOR

Aos Religiosos e às Religiosas das Famílias Monfortinas

Um texto clássico da espiritualidade mariana
1. Há 160 anos foi publicada uma obra destinada a tornar-se um clássico da espiritualidade mariana. São Luís Maria Grignion de Montfort compôs o Tratado sobre a verdadeira devoção à Virgem Santíssima no início de 1700, mas o manuscrito permaneceu praticamente desconhecido por mais de um século. Quando finalmente, quase por acaso, em 1842 foi descoberto e em 1843 foi publicado, teve sucesso imediato, revelando-se uma obra de eficiência extraordinária para a difusão da "verdadeira devoção" à Virgem Santíssima. Eu próprio, nos anos da minha juventude, tirei grandes benefícios da leitura deste livro, no qual "encontrei a resposta às minhas perplexidades" devidas ao receio que o culto a Maria, "dilatando-se excessivamente, acabasse por comprometer a supremacia do culto devido a Cristo" (Dom e mistério, pág. 38). Sob a orientação sábia de São Luís Maria compreendi que, quando se vive o mistério de Maria em Cristo, esse risco não subsiste. O pensamento mariológico do Santo, de facto, "está radicado no Mistério trinitário e na verdade da Encarnação do Verbo de Deus (ibid.).
A Igreja, desde as suas origens, e sobretudo nos momentos mais difíceis, contemplou com particular intensidade um dos acontecimentos da Paixão de Jesus Cristo, referido a São João:  "Junto à cruz de Jesus estavam, de pé, sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria, a mulher de Clopas, e Maria Madalena. Então, Jesus, ao ver ali de pé a sua mãe e o discípulo que Ele amava, disse à mãe:  "Mulher, eis o teu filho!". Depois, disse ao discípulo:  "Eis a tua mãe!". E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a como sua" (Jo 19, 25-27). Ao longo da sua história, o Povo de Deus experimentou esta doação feita por Jesus crucificado:  a doação da sua Mãe. Maria Santíssima é verdadeiramente a nossa Mãe, que nos acompanha na nossa peregrinação de fé, esperança e caridade rumo à união cada vez mais intensa com Cristo, único salvador e mediador da salvação (cf. Const. Lumen gentium, 60 e 62).
Como se sabe, no meu brasão episcopal, que é a ilustração simbólica do texto evangélico acima citado, o mote Totus tuus está inspirado na doutrina de São Luís Maria Grignion de Montfort (cf. Dom e mistério, págs. 38-39:  Rosarium Virginis Mariae, 15). Estas duas palavras exprimem a pertença total a Jesus por meio de Maria:  "Tuus totus ego sum, et omnia mea tua sunt", escreve São Luís Maria; e traduz:  "Eu sou todo teu, e tudo o que é meu te pertence, meu amável Jesus, por meio de Maria, tua Santa Mãe" (Tratado sobre a verdadeira devoção, 233). A doutrina deste Santo exerceu uma profunda influência sobre a devoção mariana de muitos fiéis e sobre a minha própria vida. Trata-se de uma doutrina vivida, de grande profundidade ascética e mística, expressa com um estilo vivo e fervoroso, que usa com freqüência imagens e símbolos. A partir do tempo em que São Luís Maria viveu, a teologia mariana contudo desenvolveu-se muito, sobretudo mediante o contributo decisivo do Concílio Vaticano II. Por conseguinte, hoje, deve ser lida novamente e interpretada à luz do Concílio a doutrina monfortina, que conserva de igual modo a sua substancial validade.
Com esta Carta, gostaria de partilhar convosco, Religiosos e Religiosas das Famílias Monfortinas, a meditação de alguns trechos dos escritos de São Luís Maria, que nos ajudam nestes momentos difíceis a alimentar a nossa confiança na meditação da Mãe do Senhor.

Ad Iesum per Mariam
2. São Luís Maria propõe com singular eficiência a contemplação amorosa do mistério da Encarnação. A verdadeira devoção mariana é cristocêntrica. Com efeito, como recordou o Concílio Vaticano II, "a Igreja, meditando piedosamente na Virgem, e contemplando-a à luz do Verbo feito homem, penetra mais profundamente, cheia de respeito, no insondável mistério da Encarnação" (Const. Lumen gentium, 65).
O amor de Deus mediante a união a Jesus Cristo é a finalidade de qualquer devoção autêntica, porque como escreve São Luís Maria Cristo "é o nosso único mestre e deve instruir-nos, o nosso único Senhor do qual devemos depender, a nossa única Cabeça à qual devemos permanecer unidos, o nosso único modelo com o qual nos devemos conformar, o nosso único médico que nos deve curar, o nosso único pastor que nos deve alimentar, o nosso único caminho que nos deve vivificar e o nosso único tudo, em todas as coisas, que nos deve satisfazer" (Tratado sobre a verdadeira devoção, 61).

3. A devoção à Santa Virgem é um meio privilegiado "para encontrar Jesus Cristo, para o amar com ternura e para o servir com fidelidade" (Tratado sobre a verdadeira devoção, 62). Este desejo central de "amar com ternura" é imediatamente dilatado numa fervorosa oração a Jesus, pedindo a graça de participar na indizível comunhão de amor que existe entre Ele e a sua Mãe. A relatividade total de Maria a Cristo, e, n'Ele, à Santíssima Trindade, é antes de mais experimentada na observação:  "Todas as vezes que pensas em Maria, Maria louva e honra contigo a Deus. Maria é toda relativa a Deus, e eu chamá-la-ia muito bem a relação de Deus, que existe unicamente em relação a Deus, o eco de Deus, que não diz e não repete a não ser Deus. Se dizes Maria, ela repete Deus. Santa Isabel louvou Maria e proclamou-a bem-aventurada porque acreditou. Maria o eco fiel de Deus entoou:  Magnificat anima mea Dominum:  a minha alma louva ao Senhor. Aquilo que Maria fez naquela ocasião, repete-o todos os dias. Quando é louvada, amada, honrada ou recebe algo, Deus é louvado, Deus é amado, Deus recebe pelas mãos de Maria e em Maria" (Tratado sobre a verdadeira devoção, 225).
É ainda na oração à Mãe do Senhor que São Luís Maria exprime a dimensão trinitária da sua relação com Deus: "Saúdo-te Maria, Filha predileta do Pai eterno! Saúdo-te Maria, Mãe admirável do Filho! Saúdo-te Maria, Esposa fidelíssima do Espírito Santo!" (Segredo de Maria, 68). Esta tradicional expressão, já usada por São Francisco de Assis (cf. Fontes Franciscanas, 281), mesmo contendo níveis heterogéneos de analogia, é sem dúvida eficaz para exprimir de certa forma a peculiar participação de Nossa Senhora na vida da Santíssima Trindade.

4. São Luís Maria contempla todos os mistérios da Encarnação que se realizou no momento da Anunciação. Assim, no Tratado sobre a verdadeira devoção, Maria é apresentada como "o verdadeiro paraíso terrestre do Novo Adão", a "terra virgem e imaculada" pela qual Ele foi plasmado (n. 261). Ela é também a Nova Eva, associada ao Novo Adão na obediência que repara a desobediência original do homem e da mulher (cf. ibid., 53; Santo Ireneu Adversus haereses, III 21, 10-22, 4). Por meio desta obediência, o Filho de Deus entra no mundo. A mesma Cruz já está misteriosamente presente no momento da Encarnação, no momento em que Jesus é concebido no seio de Maria. Com efeito, o ecce venio,  da  Carta  aos  Hebreus (cf. 10, 5-9) é o ato primordial da obediência do Filho ao Pai, aceitação do seu Sacrifício redentor "quando entra no mundo".
"Toda a nossa perfeição escreve São Luís Maria Grignion de Montfort consiste em ser conformes, unidos e consagrados a Jesus Cristo. Por isso, a mais perfeita de todas as devoções é incontestavelmente a que nos conforma, une e consagra mais perfeitamente a Jesus Cristo. Mas, sendo Maria a criatura mais conforme a Jesus Cristo, tem-se como resultado que, entre todas as devoções, a que consagra e conforma mais uma alma a nosso Senhor é a devoção a Maria, sua Mãe santa, e que quanto mais uma alma estiver consagrada a Maria, tanto mais estará consagrada a Jesus Cristo" (Tratado sobre a verdadeira devoção, 120). Dirigindo-se a Jesus, São Luís Maria exprime como é maravilhosa a união entre o Filho e a Mãe:  "Ela é de tal forma transformada em ti pela graça, que não vive mais, não existe mais:  és unicamente Tu, meu Jesus, que vives e reinas nela... Ah! se conhecêssemos a glória e o amor que tu recebes nesta maravilhosa criatura... Ela está tão intimamente unida... De fato, ela ama-te mais ardentemente e glorifica-te mais perfeitamente do que todas as outras criaturas juntas" (Ibid., 63).

Maria, membro eminente do Corpo místico e Mãe da Igreja
5. Segundo as palavras do Concílio Vaticano II, Maria "é saudada como membro eminente e inteiramente singular da Igreja, seu tipo e exemplar perfeitíssimo na fé e na caridade" (Const. Lumen gentium, 53). A Mãe do Redentor é também redimida por ele, de maneira única na sua Imaculada Conceição, e precedeu-nos naquela escuta crente e cheia de amor da Palavra de Deus que nos torna bem-aventurados (cf. ibid., 58). Também por isso, Maria "está intimamente unida à Igreja:  a Mãe de Deus é a figura (typus) da Igreja, como já ensinava Santo Ambrósio, isto é, na ordem da fé, da caridade e da união perfeita com Cristo. De fato, no mistério da Igreja, que é também chamada justamente mãe e virgem, a Bem-Aventurada Virgem Maria é a primeira, dando de modo eminente e singular o exemplo de virgem e de mãe" (Ibid., 63). O próprio Concílio contempla Maria como Mãe dos membros de Cristo (cf. ibid., 53; 62), e assim Paulo VI a proclamou Mãe da Igreja. A doutrina do Corpo místico, que exprime de maneira mais forte a união de Cristo com a Igreja, é também o fundamento bíblico desta afirmação. "A cabeça e os membros pertencem à mesma mãe" (Tratado sobre a verdadeira devoção, 32), recorda-nos São Luís Maria. Neste sentido, dizemos que, por obra do Espírito Santo, os membros estão unidos e conformados com Cristo Cabeça, Filho do Pai e de Maria, de tal modo que "qualquer verdadeiro filho da Igreja deve ter Deus como Pai e Maria como Mãe" (Segredo de Maria, 11).
Em Cristo, Filho unigênito, somos realmente filhos do Pai e, ao mesmo tempo, filhos de Maria e da Igreja. Com o nascimento virginal de Jesus, de certa forma é toda a humanidade que renasce. À Mãe do Senhor "podem ser aplicadas, de maneira mais verdadeira de quanto São Paulo as aplica a si mesmo, estas palavras:  "Meus filhos, por quem sinto outra vez dores de parto, até que Cristo se forme entre vós" (Gl 4, 19). Dou à luz todos os dias os filhos de Deus, enquanto não estiver formado neles Jesus Cristo, meu Filho, na plenitude da sua idade" (Tratado sobre a verdadeira devoção, 33). Esta doutrina encontra a sua expressão mais bela na oração:  "Oh! Espírito Santo, concede-me uma grande devoção e uma grande inclinação para Maria, um apoio sólido sobre o seu seio materno e um recurso assíduo à sua misericórdia, para que, nela, tu possas formar Jesus dentro de mim" (Segredo de Maria, 67).
Uma das expressões mais nobres da espiritualidade de São Luís Maria Grignion de Montfort refere-se à identificação do fiel com Maria no seu amor por Jesus, no seu serviço a Jesus.
Meditando o conhecido texto de Santo Ambrósio:  A alma de Maria esteja em cada um para glorificar o Senhor, o espírito de Maria esteja em cada um para exultar em Deus (Expos. in Luc., 12, 26:  PL 15, 1561), ele escreve: "Como é feliz uma alma quando... está totalmente arrebatada e guiada pelo espírito de Maria, que é um espírito doce e forte, zeloso e prudente, humilde e corajoso, puro e fecundo" (Tratado sobre a verdadeira devoção, 258). A identificação mística com Maria está totalmente dirigida para Jesus, como se exprime na oração: "Por fim, minha querida e amadíssima Mãe, se for possível, faz com que eu não tenha outro espírito a não ser o teu para conhecer Jesus Cristo e os seus desejos divinos; que não tenha outra alma a não ser a tua para louvar e glorificar o Senhor; que não tenha outro coração a não ser o teu para amar Deus com caridade pura e ardente como tu" (Segredo de Maria, 68).

A santidade perfeição da caridade
6. A Constituição Lumen gentium recita ainda:  "Mas, ao passo que, na Santíssima Virgem, a Igreja alcançou já aquela perfeição sem mancha nem ruga que lhe é própria (cf. Ef 5, 27), os fiéis ainda têm de trabalhar por vencer o pecado e crescer na santidade; e por isso levantam os olhos para Maria, que brilha como modelo de virtudes sobre toda a família dos eleitos" (n. 65). A santidade é perfeição da caridade, daquele amor a Deus e ao próximo que é o objecto do maior mandamento de Jesus (cf. Mt 22, 38), e é também o maior dom do Espírito Santo (cf. 1 Cor 13, 13). Assim, nos seus Cânticos, São Luís Maria apresenta sucessivamente aos fiéis a excelência da caridade (Cântico 5), a luz da fé (Cântico 6) e a firmeza na esperança (Cântico 7).
Na espiritualidade monfortina, o dinamismo da caridade é expresso especialmente através do símbolo da escravidão do amor a Jesus a exemplo e com a ajuda materna de Maria. Trata-se da comunhão plena na kenosis de Cristo; comunhão vivida com Maria, intimamente presente nos mistérios da vida do Filho. "Não há nada entre os cristãos que faça pertencer de maneira mais absoluta a Jesus Cristo e à sua Santa Mãe como a escravidão da vontade, segundo o exemplo do próprio Jesus Cristo, que assumiu as condição de escravo por amor a nós formam servi accipiens e da Santa Virgem, que se considerou serva e escrava do Senhor. O apóstolo honra-se do título de servus Christi. Várias vezes, na Sagrada Escritura, os cristãos são chamados servi Christi" (Tratado sobre a verdadeira devoção, 72). De fato, o Filho de Deus, que veio ao mundo em obediência ao Pai na Encarnação (cf. Hb 10, 7), humilhou-se depois fazendo-se obediente até à morte, e morte de Cruz (cf. Fl 2, 7-8). Maria correspondeu à vontade de Deus com o dom total de si, corpo e alma, para sempre, desde a Anunciação até à Cruz, e da Cruz até à Assunção.
Certamente, entre a obediência de Cristo e a obediência de Maria existe uma assimetria determinada pela diferença ontológica entre a Pessoa divina do Filho e a pessoa humana de Maria, do que deriva também a exclusividade da eficiência salvífica fontal da obediência de Cristo, da qual a sua própria Mãe recebeu a graça para poder obedecer de modo total a Deus e assim colaborar com a missão do seu Filho.
Por conseguinte, a escravidão de amor deve ser interpretada à luz do admirável intercâmbio entre Deus e a humanidade no mistério do Verbo encarnado. É um verdadeiro intercâmbio de amor entre Deus e a sua criatura na reciprocidade da doação total de si. "O espírito desta devoção... é tornar a alma interiormente dependente e escrava da Santíssima Virgem e de Jesus por meio dela" (Segredo de Maria, 44). Paradoxalmente, este "vínculo de caridade", esta "escravidão de amor" torna o homem plenamente livre, com a verdadeira liberdade dos filhos de Deus (cf. Tratado sobre a verdadeira devoção, 169). Trata-se de se entregar totalmente a Jesus, respondendo ao Amor com que Ele nos amou primeiro. Qualquer pessoa que viver neste amor pode dizer como São Paulo:  "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Gl 2, 20).

A "peregrinação da fé"
7. Na Novo millennio ineunte escrevi que "se alcança Jesus unicamente pelo caminho da fé" (n. 19). Foi precisamente este o caminho seguido por Maria durante toda a sua vida terrena, e é o caminho da Igreja peregrina até ao fim dos tempos. O Concílio Vaticano II insistiu muito sobre a fé de Maria, misteriosamente partilhada pela Igreja, pondo em realce o itinerário de Nossa Senhora desde o momento da Anunciação até ao momento da Paixão redentora (cf. Const. Lumen gentium, 57 e 67; Carta enc. Redemptoris Mater, 25-27).
Nos escritos de São Luís Maria encontramos a mesma ênfase sobre a fé vivida pela Mãe de Jesus num caminho que vai da Encarnação até à Cruz, uma fé na qual Maria é modelo e tipo da Igreja. São Luís Maria expressa-o com riqueza de imagens quando expõe ao seu leitor os "efeitos maravilhosos" da perfeita devoção mariana:  "Portanto, quanto mais ganhares a benevolência desta venerável Princesa e Virgem fiel, tanto mais o teu comportamento de vida estará inspirado pela fé pura. Uma fé pura, portanto não te preocuparás minimamente de quanto é sensível e extraordinária. Uma fé viva e animada pela caridade, que te fará agir unicamente com motivo do amor puro. Uma fé firme e inabalável como uma rocha, que te fará permanecer firme e constante no meio de furacões e de tempestades. Uma fé laboriosa e penetrante que, como misteriosa chave polivalente, te fará entrar em todos os mistérios de Jesus Cristo, nos fins últimos do homem e no coração do próprio Deus. Uma fé corajosa, que te fará empreender e concretizar sem hesitações coisas grandes para Deus e para a salvação das almas. Por fim, uma fé que será a tua chama ardente, a tua vida divina, o teu tesouro escondido da Sabedoria divina e a tua arma onipotente, com a qual esclarecerás todos os que são tíbios e têm necessidade do ouro ardente da caridade, darás de novo vida aos que morreram por causa do pecado, comoverás e perturbarás com as tuas palavras suaves e fortes os corações de pedra e os cedros do Líbano e, por fim, resistirás ao demônio e a todos os inimigos da salvação" (Tratado sobre a verdadeira devoção, 214).
Como São João da Cruz, São Luís Maria insiste principalmente sobre a pureza da fé e sobre a sua essencial e muitas vezes dolorosa obscuridade (cf. Segredo de Maria, 51, 52). É a fé contemplativa que, renunciando às coisas sensíveis ou extraordinárias, penetra nas profundezas misteriosas de Cristo. Assim, na sua oração, São Luís Maria dirige-se à Mãe do Senhor dizendo:  "Não te peço visões ou revelações, nem gostos ou delícias, mesmo só espirituais... Aqui na terra, eu quero que me pertença unicamente o que tu quiseres, isto é:  crer com fé pura sem nada provar ou ver" (ibid., 69). A Cruz é o momento culminante da fé que Maria tem, como escrevi na Encíclica Redemptoris Mater:  "Maria participa mediante a fé no mistério desconcertante desse despojamento... Isso constitui, talvez, a mais profunda "kenosis" da fé na história da humanidade" (n. 18).

Sinal de esperança certa
8. O Espírito Santo convida Maria a "reproduzir-se" nos seus eleitos, alargando até eles as raízes da sua "fé invencível", mas também da sua "firme esperança" (cf. Tratado sobre a verdadeira devoção, 34). O Concílio Vaticano II recordou quanto segue: "A Mãe de Jesus, assim como, glorificada já em corpo e alma, é imagem e início da Igreja que se há-de consumar no século futuro, assim também, na terra, brilha como sinal de esperança segura e de consolação, para o Povo de Deus ainda peregrinante, até que chegue o dia do Senhor (Const. Lumen gentium, 68). Esta dimensão escatológica é contemplada por São Luís Maria sobretudo quando fala dos "santos dos últimos tempos", formados pela Virgem Santa para levar à Igreja a vitória de Cristo sobre as forças do mal (cf. Tratado sobre a verdadeira devoção, 49-59). Não se trata de modo algum de uma forma de "milenarismo", mas do sentido profundo da índole escatológica da Igreja, ligada à unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo. A Igreja espera a vinda gloriosa de Jesus no fim dos tempos. Como Maria e com Maria, os santos são na Igreja e para a Igreja, para fazer resplandecer a sua santidade, para alargar até aos confins do mundo e até ao fim dos tempos a obra de Cristo, único Salvador.
Na antífona Salve Regina, a Igreja chama a Mãe de Deus "nossa Esperança". A mesma expressão é usada por São Luís Maria a partir de um texto de São João Damasceno, que aplica a Maria o símbolo bíblico da âncora (cf. Hom. 1ª in Dorm. B.V.M.:  PG 96, 719): "Nós unimos as almas a ti, nossa esperança, como a uma âncora firme. A ela afeiçoaram-se em maior medida os santos que se salvaram e fizeram afeiçoar os outros, para que perseverassem na virtude. Portanto, bem-aventurados, infinitamente bem-aventurados os cristãos que hoje se mantêm unidos a ela fiel e totalmente como a uma âncora firme" (Tratado sobre a verdadeira devoção, 175). Através da devoção a Maria, o próprio  Jesus  "alarga  o  coração  com uma  santa  confiança  em  Deus,  fazendo com que ele seja visto como Pai e inspirando um amor terno e filial" (Ibid., 169).
Juntamente com a Virgem Santa, com o mesmo coração de mãe, a Igreja reza, espera e intercede pela salvação de todos os homens. São as últimas palavras da constituição Lumen gentium: "Dirijam todos os fiéis instantes súplicas à Mãe de Deus e mãe dos homens, para que ela, que assistiu com as suas orações aos começos da Igreja, também agora, exaltada sobre todos os anjos e bem-aventurados, interceda, junto de seu Filho, na comunhão de todos os santos, até que todos os povos, tanto os que ostentam o nome cristão, como os que ainda ignoram o Salvador, se reúnam felizmente, em paz e harmonia, no único Povo de Deus, para glória da santíssima e indivisa Trindade" (n. 69).
Fazendo de novo meus estes votos, que juntamente com os outros Padres Conciliares expressei há quase quarenta anos, envio a toda a Família monfortina uma especial Bênção apostólica.

Vaticano, 8 de Dezembro de 2003, Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria. 

Mensagem do Papa João Paulo II à Família Monfortina por ocasião do 50° Aniversário da Canonização do Fundador

MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II À FAMÍLIA MONFORTINA POR OCASIÃO DO 50° ANIVERSÁRIO DA CANONIZAÇÃO DO FUNDADOR
 
Ao Reverendo Padre WILLIAM CONSIDINE
Superior-Geral da Companhia de Maria
Ao Reverendo Irmão JEAN FRIANT
Superior-Geral dos Irmãos da Instrução cristã de São Gabriel
À Reverenda Madre BÁRBARA O’DEA
Superiora-Geral das Filhas da Sabedoria

1. A família monfortina vai abrir um ano consagrado à celebração do qüinquagésimo aniversário da canonização de São Luís-Maria Grignion de Montfort, que teve lugar em Roma a 20 de Julho de 1947. Com a Companhia de Maria, os Irmãos de São Gabriel e as Filhas da Sabedoria, sinto-me feliz por dar graças ao Senhor pela grande irradiação deste santo missionário, cujo apostolado foi nutrido por uma profunda vida de oração, uma inabalável fé em Deus Trindade e uma intensa devoção à Santíssima Virgem Maria, Mãe do Redentor.
Pobre entre os pobres, profundamente integrado na Igreja apesar das incompreensões que encontrou, São Luís-Maria tomou por lema estas simples palavras: «Só Deus». Ele cantava: «Só Deus é a minha ternura, só Deus é o meu sustentáculo, só Deus é todo o meu bem, a minha vida e a minha riqueza» (Cântico 55, 11). Nele, o amor por Deus era total. Era com Deus e por Deus que ia ao encontro dos outros e percorria os caminhos da missão. Continuamente consciente da presença de Jesus e de Maria, era em todo o seu ser uma testemunha da caridade teologal, que ele desejava fazer partilhar. A sua acção e a sua palavra não tinham por finalidade senão chamar à conversão e fazer viver de Deus. Os seus escritos são de igual modo testemunhos e louvores ao Verbo encarnado, e também a Maria, «obra-prima do Altíssimo, milagre da Sabedoria eterna» (cf. O amor da Sabedoria eterna, n. 106).
2. A mensagem que nos deixou o Padre de Montfort baseia-se, de modo inseparável, nas meditações da mística e na pedagogia pastoral do apóstolo. A partir das grandes correntes teológicas então difundidas, ele exprimia a sua fé pessoal em função da cultura do seu tempo. Alternadamente poético e familiar à linguagem dos seus interlocutores, o seu estilo pode surpreender os nossos contemporâneos, mas isto não os deve impedir de se inspirarem nas suas intuições fecundas. Eis por que é precioso o trabalho realizado pela família monfortina hoje, pois ajuda os fiéis a perceberem a coerência duma visão teológica e espiritual, sempre orientada para uma intensa vida de fé e de caridade.
Antes de tudo, São Luís-Maria impressiona pela sua espiritualidade teocêntrica. Ele tem «o gosto de Deus e da Sua verdade» (O amor da Sabedoria eterna, n. 13) e sabe comunicar a sua fé em Deus, do Qual exprime ao mesmo tempo a majestade e a doçura, pois Deus é fonte transbordante de amor. O Padre de Montfort não hesita em abrir aos mais humildes o mistério da Trindade, que inspira a sua oração e a sua reflexão sobre a Encarnação redentora, obra das Pessoas divinas. Quer fazer compreender a atualidade da presença divina no tempo da Igreja; escreve sobretudo: «A conduta que as três Pessoas da Santíssima Trindade tiveram na Encarnação e a primeira vinda de Jesus Cristo, Elas conservam-na todos os dias, duma maneira invisível, na santa Igreja, e a conservá-la-ão até à consumação dos séculos, na última vinda de Jesus Cristo » (Tratado da verdadeira devoção, n. 22). Na nossa época, o seu testemunho pode ajudar a fundar com vigor a existência cristã sobre a fé no Deus vivo, sobre uma relação calorosa com Ele e sobre uma sólida experiência eclesial, graças ao Espírito do Pai e do Filho, cujo reino continua no presente (cf. Oração abrasada, n. 16).
3. A pessoa de Cristo domina o pensamento de Grignion de Montfort: «Jesus Cristo, nosso Salvador, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, deve ser o fim último de todas as nossas outras devoções » (Tratado da verdadeira devoção, n. 61). A Encarnação do Verbo é para ele realidade absolutamente central: «Ó Sabedoria eterna [...] adoro-Vos [...] no seio do vosso Pai durante a eternidade, e no seio virginal de Maria, vossa digna Mãe, no tempo da vossa Encarnação» (O amor da Sabedoria eterna, n. 223). A ardente celebração da pessoa do Filho de Deus encarnado, que se encontra em todo o ensinamento do Padre de Montfort, conserva hoje o seu inestimável valor, porque depende duma concepção equilibrada do ponto de vista da doutrina e leva à adesão de todo o ser Àquele que revela à humanidade a sua verdadeira vocação. Possam os fiéis escutar esta exortação: «Jesus Cristo, a Sabedoria eterna, é tudo o que podeis e deveis desejar. Desejai-O, procurai- O [...] como única e preciosa pérola » (ibid., n. 9)!
A contemplação das grandezas do mistério de Jesus caminha a par e passo com a da Cruz, da qual Montfort fazia o maior sinal das suas missões. Muitas vezes provado de maneira árdua, conheceu pessoalmente o seu peso, como o testemunha uma carta à sua irmã, a quem pede que reze por ele «a fim de obter de Jesus crucificado a força para carregar as cruzes mais rudes e mais pesadas » (Carta 24). Todos os dias, ele pratica a imitação de Cristo naquilo a que chama o amor ardente da Cruz, na qual vê «o triunfo da Sabedoria eterna» (O amor da Sabedoria eterna, cap. XIV). Mediante o sacrifício do Calvário, o Filho de Deus, ao fazer-Se pequenino e humilde até ao extremo, assume a condição dos Seus irmãos submetidos ao sofrimento e à morte. Cristo manifesta nisto, de maneira eloquente, o Seu amor infinito e abre à humanidade a via da vida nova. Luís-Maria, que seguia o seu Senhor e fazia «a sua morada na Cruz» (ibid., n. 180), dá um testemunho de santidade, que os seus herdeiros na família monfortina devem dar, por sua vez, a fim de mostrar a este mundo a verdade do amor salvífico.
4. Para conhecer a Sabedoria eterna, incriada e encarnada, Grignion de Montfort convidou constantemente a confiar na Santíssima Virgem Maria, tão inseparável de Jesus que «antes se separaria a luz do sol» (Verdadeira devoção, n. 63). Ele continua a ser um incomparável cantor e discípulo da Mãe do Salvador, na qual celebra aquela que conduz de maneira segura a Cristo: «Se estabelecemos a sólida devoção da Santíssima Virgem, é só para estabelecer de modo mais perfeito a de Jesus Cristo e para obter um meio fácil e seguro para encontrar Jesus Cristo» (ibid., n. 62). Pois Maria é a criatura escolhida pelo Pai e totalmente consagrada à sua missão materna. Tendo entrado em união com o Verbo mediante o seu livre consentimento, encontra-se associada de maneira privilegiada à Encarnação e à Redenção, de Nazaré até ao Gólgota e ao Cenáculo, absolutamente fiel à presença do Espírito Santo. Ela «encontrou graça diante de Deus para todo o mundo em geral e para cada um em particular » (ibid., n. 164).
Deste modo Luís-Maria chama a consagrar- se totalmente a Maria, para acolher a sua presença no mais íntimo da alma. «Maria torna-se tudo para esta alma junto de Jesus Cristo: esclarece o seu espírito pela sua fé pura. Aprofunda o seu coração mediante a sua humildade, amplia-a e abraça-a pela sua caridade, purifica-a com a sua pureza, enobrece e engradece-a pela sua maternidade» (O segredo de Maria, n. 57). O recurso a Maria leva sempre a dar a Jesus um lugar mais importante na vida; é significativo, por exemplo, que Montfort convida o fiel a voltar-se para Maria antes da comunhão: «Suplicareis a esta boa Mãe que vos prepare o próprio coração, a fim de receber nele o seu Filho com as suas mesmas disposições» (Verdadeira devoção, n. 266).
No nosso tempo, em que a devoção mariana é viva mas nem sempre suficientemente esclarecida, seria bom reencontrar o fervor e o justo estilo do Padre de Montfort, para atribuir à Virgem o seu verdadeiro lugar e aprender a orar: «Ó Mãe de misericórdia, dai-me a graça de obter a verdadeira sabedoria de Deus e de me colocar por isso no número daqueles que amais, ensinais e conduzis [...] Ó Virgem fiel, tornai-me em todas as coisas um perfeito discípulo, imitador e escravo da Sabedoria encarnada, Jesus Cristo, vosso Filho» (O amor da Sabedoria eterna, n. 227). Sem dúvida, algumas transposições de linguagem impõem-se, mas a família monfortina deve continuar o seu apostolado mariano no espírito do seu fundador, a fim de ajudar os fiéis a manterem uma relação viva e íntima com aquela que o Concílio Vaticano II honrou como um membro especial e absolutamente único da Igreja, recordando que, «a Mãe de Deus é o tipo e a figura da Igreja, na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo, como ensinava Santo Ambrósio» (Lumen gentium, 63).
5. O ano monfortino chama a atenção para os principais eixos da espiritualidade de São Luís-Maria, mas de igual modo é oportuno recordar que este último foi um missionário extraordinariamente irradiante. Depois da sua ordenação, ele escrevia: «Sinto um grande desejo de fazer amar a nosso Senhor e à sua Santa Mãe, de ir, duma maneira pobre e simples, ensinar o catecismo aos pobres». Ele viveu em plena fidelidade a esta vocação, a qual será compartilhada com os sacerdotes que a ele se unirão. Nas Regras dos Sacerdotes missionários da Companhia de Maria, ele convida o missionário apostólico a pregar com simplicidade e verdade, sem temor e com caridade, «e com santidade, não tendo em vista senão Deus, sem interesse a não ser o da Sua glória, e praticando em primeiro lugar o que ensina aos outros» (n. 62).
No momento em que se impõe na maior parte das regiões do mundo a necessidade duma nova evangelização, o zelo do Padre de Montfort pela Palavra de Deus, a sua solicitude pelos mais pobres, a sua aptidão para se fazer ouvir pelos mais simples e para estimular a piedade, as suas qualidades de organizador, as suas iniciativas para prolongar o fervor pela fundação de movimentos espirituais ou para envolver os leigos no serviço dos pobres, tudo isto, com as adaptações queridas, pode inspirar os apóstolos de hoje. Uma das constantes das numerosas missões pregadas pelo próprio São Luís-Maria merece ser ressaltada hoje: ele pede a renovação das promessas do batismo, fazendo desta iniciativa uma introdução à absolvição e à comunhão. Isto assume uma surpreendente atualidade, neste primeiro ano preparatório para o Grande Jubileu do Ano 2000, precisamente consagrado a Cristo e ao sacramento do Batismo. Montfort tinha bem compreendido a importância deste sacramento, que consagra a Deus e constitui a comunidade, e também a necessidade de descobrir de novo, numa firme adesão de fé, o alcance dos compromissos do batismo.
Como andarilho do Evangelho, inflamado pelo amor de Jesus e da Sua santa Mãe, ele soube comover as multidões e fazer com que amassem o Cristo Redentor, contemplado na Cruz. Oxalá ele sustente os esforços dos evangelizadores do nosso tempo!
6. Caros Irmãos e Irmãs da grande família monfortina, neste ano de oração e de reflexão sobre a preciosa herança de São Luís-Maria, encorajo-vos a fazer frutificar este tesouro que não deve ficar escondido. O ensinamento do vosso fundador e mestre une-se aos temas que a Igreja inteira medita ao aproximar-se o Grande Jubileu; ele indica o caminho da verdadeira Sabedoria, que é preciso abrir a muitos jovens que procuram o sentido da própria vida e uma arte de viver.
Aprecio as vossas iniciativas para difundir a espiritualidade monfortina, nas formas que convêm às diferentes culturas, graças à colaboração dos membros dos vossos três Institutos. Sede também um apoio e uma referência para os movimentos que se inspiram na mensagem de Grignion de Montfort, a fim de dar à devoção mariana uma autenticidade cada vez mais segura. Renovai a vossa presença junto dos pobres, a vossa inserção na pastoral eclesial, a vossa disponibilidade para a evangelização.
Ao confiar a vossa vida religiosa e o vosso apostolado à intercessão de São Luís-Maria Grignion de Montfort e da Beata Maria Luísa Trichet, concedo de todo o coração a Bênção Apostólica a vós, assim como a todos os que vos estão próximos e a quem servis. - Vaticano, 21 de Junho de 1997. - JOÃO PAULO II

Carta aos Amigos da Cruz. Obra de São Luís Maria Grignion de Montfort

CARTA AOS AMIGOS DA CRUZ
Por São Luís Maria Grignion de Montfort
    
1. Visto que a cruz divina me guarda em retiro e me previne de lhes falar pessoalmente, eu não posso e nem mesmo desejo expressar sobre os sentimentos de meu coração na excelência e nas práticas de sua união à cruz sagrada de Cristo. De qualquer forma, nesse último dia de meu isolamento, eu deixo os deleites da vida interior para traçar sobre esse papel uns breves pontos da cruz com os quais penetro em seus corações generosos. Quisera Deus que eu pudesse usar o sangue de minhas veias em preferência à tinta de minha caneta! Aliás, mesmo que o sangue fosse requerido, o meu não seria bom o suficiente. Eu rezo com a intenção que o Espírito do Deus Vivo possa ser a vida, força e a mão orientadora dessa carta; que sua unção possa ser minha tinta, a cruz sagrada minha caneta, e seu coração meu livro.

I. EXCELÊNCIA DA ASSOCIAÇÃO
2. Amigos da Cruz, vocês são como cruzados unidos na batalha contra o mundo, não como religiosos que fogem do mundo a fim de que não sejam submetidos, mas como bravos e valentes guerreiros no campo de batalha, que se recusam a se retirar ou mesmo recuar uma só polegada. Sejam bravos e lutem corajosamente. Vocês devem se juntar em uma união íntima de mente e coração, que é mais forte e bem mais formidável contra o mundo e as força do inferno daquele que é o exército de uma grande nação inimiga. Malditos espíritos estão unidos para destruí-los; vocês devem ficar unidos para esmagá-los. Os avarentos estão unidos para fazer dinheiro e acumular ouro e prata; vocês devem combinar seus esforços para adquirir tesouros eternos escondidos na Cruz. Os que procuram o prazer unem-se para se regozijar, vocês devem ficar unidos para sofrer.

A. Grandeza de Seu Título
3. Vocês se auto-denominam "Amigos da Cruz". Que título glorioso! Eu devo confessar que eu fico encantado e cativado com isso. É mais radiante que o sol, mais alto que os céus, mais magnífico e resplandecente que todos os títulos que dão aos reis e imperadores. É o glorioso título de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. É o genuíno título de um Cristão.
4. Mas, se eu fico cativado pelo seu esplendor, eu não fico nem um pouco assustado pela sua responsabilidade, porque é um título que abraça dificuldade e obrigações inescapáveis, somadas nas palavras do Espírito Santo, "Uma raça escolhida, um sacerdócio real, um povo separado." Um Amigo da Cruz é alguém escolhido por Deus, dentre milhares que vivem somente de acordo com sua razão e juízo, para ser completamente divino, erguido sobre a simples razão e completamente oposto às coisas materiais, vivendo na luz da pura fé, e inspirado por um amor profundo à Cruz.
Um Amigo da Cruz é um rei todo poderoso, um campeão que triunfa sobre o demônio, o mundo e a carne em sua triplicada concupiscência. Ele destrói o orgulho de Satã pelo seu amor às humilhações; ele submete a ambição do mundo pelo seu amor à pobreza; ele refreia a sensualidade da carne pelo seu amor ao sofrimento. Um Amigo da Cruz é alguém que é santo e separado das coisas que são visíveis porque seu coração está erguido sobre tudo que há de transitório e perecível, e sua terra natal está no céu, ele viaja por todo seu mundo como um visitante e um peregrino, e, distante de colocar nisso seu coração, ele observa com indiferença e deixa tudo isso debaixo de seus pés com desprezo.
Um Amigo da Cruz é um prêmio glorioso ganho pelo crucificado Cristo no Calvário, em união com sua santa Mãe. É um Benoni ou Benjamin, um filho da aflição e da mão direita, concebido no coração sofrido de Jesus, vindo ao mundo através de seu lado trespassado, e batizado em seu sangue. Verdadeiro pela sua origem, sua vida abraça a cruz, e morre para o mundo, a carne, e o pecado, de forma que vive cá embaixo uma vida oculta em Deus por Jesus Cristo. Em curtas palavras, um perfeito Amigo da Cruz é uma verdadeira árvore frutífera de Cristo, ou particularmente um outro Cristo, de forma que ele possa verdadeiramente dizer, "Eu vivo agora não com minha própria vida mas com a vida de Cristo que vive em mim."
5. Meus queridos Amigos da Cruz, vocês vivem de acordo com o nobre título que vocês sustentam? Ou, pelo menos, vocês têm um desejo real e uma determinação sincera para fazer isso com a ajuda da graça de Deus, sob o abrigo da Cruz de Cristo e de Nossa Senhora das Aflições? Vocês estão empregando os meios necessários para isso? Vocês estão caminhando junto com o verdadeiro modo de vida, que é o estreito e pedregoso caminho do Calvário? Ou vocês estão, talvez sem perceber, na larga estrada do mundo que conduz á perdição? Vocês estão cientes que há uma estrada que é em todos os aspectos uma estrada correta e segura, mas que realmente conduz à morte eterna?
6. Vocês distinguem claramente a voz de Deus e sua graça daquela do mundo e da natureza humana? Vocês escutam a voz de Deus, nosso Pai do Céu, pronunciando sua maldição triplicada a todo aquele que segue os desejos do mundo: "Desgraça, desgraça, desgraça a todo povo da Terra;" o Pai que estica seus braços a vocês com apelo amoroso, "Revele-se, meu povo escolhido," queridos amigos da Cruz de meu Filho, fora do mundanismo, que foi por mim mesmo amaldiçoado, rejeitado pelo meu Filho, e condenado por meu Espírito Santo? Cuide-se de seguir seus conselhos, de sentar em sua companhia, ou mesmo de hesitar na estrada que eles tomam. Apresse-se em sair da infame Babilônia. Escutem somente a voz de meu Filho querido e sigam somente a Ele, que eu lhes ofereci para ser seu caminho, sua verdade, sua vida, e seu modelo. (Ipsum audite.) "Escutem a Ele." Você escuta a voz de Jesus que, sobrecarregado com sua Cruz, gritou por vocês, "Vinde! Aquele que me segue não estará andando nas trevas; Coragem! Eu venci o mundo.."?

B. As Duas Companhias
7. Meus queridos irmãos e irmãs, há duas categorias que aparecem diante de vocês a cada dia: os seguidores de Cristo e os seguidores do mundo. A companhia do nosso querido Salvador está à direita, escalando uma estrada apertada, tornou tudo mais estreito por causa da imoralidade do mundo. Nosso Mestre conduz o caminho, de pés expostos, coroado com espinhos, coberto com sangue, e onerado com uma pesada cruz. Aqueles que o seguem, embora mais corajosos, são somente uns poucos do mundo, ou porque ao povo falta coragem para segui-lo em sua pobreza, sofrimentos, humilhações e outras cruzes que seus servos devem carregar todos os dias de suas vidas.
8. Na mão esquerda está a companhia do mundo ou do demônio. Essa é ainda mais numerosa, mais imponente e mais conhecida, pelo menos na aparência. A maioria do povo moderno corre para se juntar a ela, todos juntos abarrotados, embora a estrada seja larga e esteja continuamente se tornando mais larga como nunca se viu pela multidão que se derrama como uma torrente. Está espalhada com flores, margeada com todo tipo de distrações e atrações, e pavimentada com ouro e prata.
9. À direta, os poucos grupos que seguem a Jesus falam a respeito da aflição e penitência, rezam e têm indiferença pelas coisas mundanas. Eles encorajam continuamente uns aos outros dizendo, "Agora é hora de sofrer e ficar de luto, viver no retiro e na pobreza, humilhar-se e mortificar-se; por que aqueles que não possuem o espírito de Cristo, que é o espírito da cruz, não pertencem a Ele. Aqueles que pertencem a Cristo crucificaram todas suas paixões e desejos de auto-satisfação. Nós devemos ser verdadeiras imagens de Cristo ou estaremos eternamente perdidos."
"Tenha confiança," eles dizem uns aos outros. Se Deus está do nosso lado, conosco e diante de nós, quem pode ficar contra nós? Aquele que está conosco é mais forte do que aquele que está no mundo. O servo não é maior do que seu mestre. Essa nossa leve e momentânea tribulação nos trará uma imensa e eterna glória. O número daqueles que serão salvos não é tão grande quanto algumas pessoas imaginam. Somente os valentes e os esforçados arrebatam o céu pela força. Ninguém será coroado sem que haja combatido legitimamente segundo o Evangelho e não de acordo com as máximas do mundo. Vamos lutar com toda nossa força, vamos correr com toda velocidade, que nós podemos alcançar nosso objetivo e obter a coroa. Tais são alguns dos conselhos celestiais com os quais os Amigos da Cruz inspiram uns aos outros.
10. Aqueles que seguem o mundo, pelo contrário, encorajam-se para continuar em seus maus caminhos sem escrúpulos, chamando uns aos outros, dia após dia, "Vamos comer e beber, cantar e dançar, e nos divertir. Deus é bom. Não nos criou para nos destruir. Ele não nos proíbe de nos divertir. Nós não deveríamos ser destruídos por tão pouco. 'Não morrereis'."
11. Queridos irmãos e irmãs, lembrem-se que nosso amado Salvador tem seus olhos em vocês nesse momento, e Ele diz a cada um de vocês individualmente, "Veja como quase todos me abandonaram na estrada real da Cruz. Os pagãos em sua cegueira ridicularizam minha Cruz como loucura; Judeus obstinados são repelidos por isso como um objeto de horror; heréticos destróem e quebram-na em pedaços como algo desprezível. "Até meu próprio povo – e eu digo isso com lágrimas nos olhos e sofrimento em meu coração – meus próprios filhos que eu criei e instruí em meus caminhos, meus membros que eu ressuscitei com meu próprio Espírito, voltaram as costas para mim e me abandonaram se transformando em inimigos de minha Cruz. 'Vocês também irão embora?' Vocês também me abandonarão fugindo de minha Cruz como os mundanos, que assim se tornam tantos anticristos? Vocês também seguirão o mundo; a despeito da pobreza de minha Cruz para procurar então a riqueza; evitar os sofrimentos de minha Cruz para procurar o divertimento; evita as humilhações de minha Cruz para seguir então as honras do mundo? 'Em aparência tenho muitos amigos, que asseguram me amar, porém, no fundo de seus corações me odeiam. Eu tenho muitos amigos em minha mesa, mas muito poucos de minha Cruz.' (Imit. II, 11, 1)."
12. Nesse apelo apaixonado de Jesus, vamos nos elevar sobre nossa natureza humana; não vamos nos deixar seduzir pelos nossos sentimentos, tal como Eva; mas mantenhamos nossos olhos fixados em Jesus crucificado, que nos conduz a nossa fé e nos induz à perfeição (Heb 12.2). Vamos nos separar das práticas do mal do mundo; Vamos mostrar nosso amor por Jesus da melhor forma, isto é, através de todo tipo de cruzes. Reflita bem nessas excelentes palavras de nosso Salvador, "Em seguida, Jesus disse a seus discípulos: Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me." (Mt 16.24; Lc 9.23).

II. AS PRÁTICAS DA PERFEIÇÃO CRISTÃ
13. A santidade Cristã consiste nisso:
1. Resolver se tornar um santo: "Se alguém quiser ser meu seguidor;"
2. Negação de si mesmo: "Renuncie a si mesmo;"
3. Sofrimento: "Tome sua cruz;"
4. Agir: "Siga-me."

A. Se alguém quiser me seguir
14. "Se alguém," diz nosso Senhor, apontando o pequeno número dos escolhidos desejando conformar-se com Cristo crucificado carregando sua cruz. Seu número é tão pequeno que nós seríamos confundidos se nós o conhecêssemos. É tão pequeno que dificilmente há um em dez mil, como tem sido revelado por vários santos, incluindo São Simão Estelito (como é relatado pelo Abade Nilo), São Basílio, São Efraim e outros. É tão pequeno que, para reuni-los, Deus teria que convocá-los um a um como fez através de seu profeta, "Vocês serão reunidos um a um;" um de seu país, um daquela província.

15. "Se alguém quiser,"
Se alguém tiver um desejo genuíno, uma determinação, não estimulada pela natureza, hábito, amor próprio, interesse próprio, ou respeito humano, mas pela graça do Espírito Santo totalmente conquistada, que não é dada a qualquer um. "Não é dado a todos os homens conhecer seu mistério." Em verdade, somente umas poucas pessoas têm o conhecimento de como sobreviver ao mistério da Cruz na vida diária. Para um homem subir o Monte do Calvário e permitir ser pregado à cruz com Cristo no meio de seu próprio povo, deve ser corajoso, heróico, resoluto; alguém que é íntimo de Deus, e trata com indiferença o mundo e o demônio, seu próprio corpo e seus próprios desejos; alguém que é determinado a deixar todas as coisas, a tomar para si todas as coisas, e sofrer todas as coisas por Cristo. Vocês devem compreender, meus queridos Amigos da Cruz, que se não houver alguém entre vós com tal determinação, este alguém está andando somente com um pé, voando com apenas uma asa. Ele não é digno de ser alguém de sua companhia, posto que ele não é digno de ser chamado um Amigo da Cruz, que nós devemos, como Jesus, amar "com uma mente rica e um coração desejoso." Só precisamos de um membro com meio coração para corromper o grupo todo, como um tolo repulsivo. Se um tal entrar em seu aprisco através da porta má do mundo, então, em nome de Cristo crucificado, expulse-o como você faria com um lobo do rebanho.

16. "Se alguém quiser ser um seguidor meu."
Se alguém quiser me seguir que, assim se humilhe e se esvazie, e que chegue a parecer um verme e não um homem; comigo, que não vim ao mundo senão para abraçar a cruz, aqui estou; para preparar meu coração, para amar a sabedoria desde minha juventude, para suspirar por ela em todos os dias da minha vida, para levá-la alegremente, preferindo-a a todas as alegrias e deleites que o céu e a terra possam oferecer, e não se contentar plenamente até morrer em seu divino abraço.

B. Renuncie a si mesmo
17. Se alguém, portanto, quiser me seguir tão humilhado e crucificado, deve se gloriar, como eu, somente na pobreza, humilhações e sofrimentos de minha Cruz. "Renuncie a si mesmo." Excluídos estão da companhia dos Amigos da Cruz o sábio mundano, os intelectuais e os céticos vinculados a suas próprias idéias e inflados com seus próprios talentos. Longe de vocês aqueles tagarelas sem fim que fazem um grande espetáculo, mas não produzem nada a não ser orgulho. Longe de vocês aqueles assim chamados devotos Católicos que em seu orgulho exibem a auto-suficiência do orgulhoso Lúcifer em todo lugar que vão, dizendo, "Eu não sou como o resto dos homens;" que não podem sofrer, estando culpados sem darem desculpa, serem atacados sem responderem de volta, serem humilhados sem exaltarem a si mesmos.
Sejam cuidadosos para não admitirem no interior de sua sociedade aquelas pessoas delicadas e sensíveis que ficam com medo da mais leve picada de alfinete, que gritam e queixam-se à mínima dor, que não sabem nada do vestuário, da disciplina ou outros instrumentos de penitência, e que misturam-se com suas devoções modernas, uma mais refinada exigência e uma mais observada carência de mortificação.

C. Tome sua cruz
18. "Tome sua cruz," aquela que é dele. Que o homem (ou mulher), de modo tão extraordinário, "muito além do preço de pérolas, "tome sua cruz alegremente, abrace-a com amor, e carregue-a corajosamente em seus ombros, sua própria cruz, e não aquela de um outro – sua própria cruz que eu, em minha sabedoria, designei para ele em todos detalhes de número, medida e peso; sua própria cruz que eu moldei com minhas próprias mãos e com grande exatidão com relação às suas quatro dimensões: comprimento, largura, espessura e profundidade; sua própria cruz, traçada por minha mão com exatidão; sua própria cruz, que é o maior presente que eu posso conceder aos meus escolhidos na terra; sua própria cruz, cuja espessura é feita à custa da perda de posses, humilhações, desprezo, sofrimentos, enfermidades e experiências espirituais, que vêm diariamente até sua morte em conformidade com minha providência; sua própria cruz, cujo comprimento consiste de um certo período de dias ou meses sofrendo calúnias, ou vivendo como um doente acamado, ou sendo forçado a pedir, ou sofrer pelas tentações, secura, desolação, e outras experiências interiores; sua própria cruz, cuja largura é moldada sobre as mais ásperas e amargas circunstâncias produzidas por parentes, amigos, servos; sua própria cruz, cuja profundidade é moldada sobre as experiências escondidas que nele deveriam ser infligidas sem capacidade de encontrar qualquer conforto em outras pessoas, porque elas também, sob minha direção, afastar-se-ão dele e se reunirão comigo para fazê-lo sofrer.
19. "Tome-a," significa carregar sua cruz e não arrastá-la, ou livrar-se dela, ou diminuir seu peso, ou escondê-la. Em vez disso, venha suspendê-la no alto e carregá-la sem impaciência ou aborrecimento, sem reclamação intencional ou resmungo, sem hesitação ou encobrimento, sem vergonha ou respeito humano. "Tome-a" e ajuste-a em sua fronte, dizendo com São Paulo, "A única coisa que eu posso ostentar a respeito é a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo." Carregue-a em seus ombros como Nosso Senhor, que tomara se torne a fonte de suas vitórias e o espectro de seu poder: "O domínio é colocado sob seus ombros." Ajuste-a em seu coração, onde, tomara, como a sarça ardente de Moisés, queime dia e noite com o puro amor de Deus sem ser consumida!
20. "A cruz": Carregue, porque nada é tão necessário, tão benéfico, tão agradável, ou tão glorioso como sofrer algo por Jesus Cristo.

1. Nada é tão necessário
21. Queridos Amigos da Cruz, nós somos todos pecadores; não há ninguém entre nós que não tenha merecido o inferno, e eu muito mais do que qualquer um. Nossos pecados devem ser punidos ou nesse mundo ou no próximo. Se nós sofremos por eles agora, nós não deveríamos sofrer por eles depois da morte. Se nós, de bom grado, aceitamos o castigo por eles, essa punição será um ato do amor de Deus; porque é a misericórdia que sustenta poder e punições nesse mundo, e não a estrita justiça. Esse castigo será leve e temporário, acompanhado pela consolação e mérito, e seguido pelas recompensas tanto aqui quanto na eternidade.
22. Mas se o castigo devido por nossos pecados é adiado até o mundo vindouro, então será a justiça vingadora de Deus que oferece tudo ao fogo e à espada, que infligirá o castigo, um terrível e indescritível castigo: "Quem compreende o poder de sua cólera?" Julgamento sem misericórdia, sem reparação, sem mérito, sem limite e sem fim. Sim, sem fim. Esse pecado grave de um momento que você cometeu, esse mau pensamento voluntário que escapou ao seu cuidado, essa palavra que se arrastou com o vento, essa ação diminuta que violentou a lei de Deus – serão castigados pela eternidade, seja com Deus ou sem Deus, na companhia dos demônios no inferno, sem que esse Deus vingador tenha piedade de seus espantosos tormentos, em seus soluços e lágrimas, violentos o suficiente para lascar pedras. Padecer eternamente, sem mérito algum, sem misericórdia e sem fim.
23. Nós não pensamos nisso, meus queridos irmãos e irmãs, quando nós havemos de sofrer alguma experiência nesse mundo? Quão sortudos somos nós para sermos capazes de mudar um castigo eterno e inútil por outro passageiro e transitório somente por tolerar nossa cruz com paciência! Quantas de nossas dívidas ainda não estão pagas! Quantos pecados nós cometemos e que, apesar de uma confissão sincera e uma contrição profunda, nós havemos de sofrer no purgatório por vários anos, simplesmente porque nesse mundo nós nos contentamos com umas poucas leves penitências!
Ah, saldemos nossas dívidas com boa-vontade nessa vida carregando alegremente nossa cruz. No outro, tudo deverá ser pago pelas más até o último centavo, até uma palavra ociosa. Se lográssemos apanhar do diabo o livro da morte onde ele anotou todos nossos pecados e a punição que lhes é devida, que dívida pesada encontraríamos, e quão contentes ficaríamos por sofrer tão longos anos na terra em preferência a um único dia no mundo vindouro!
24. Amigos da Cruz, vocês não se elogiam pelo que vocês são, ou desejam vir a ser, os amigos de Deus? Bem, então, decidam beber o cálice que vocês devem beber para que se tornem amigos de Deus: "Aqueles que beberam o cálice do Senhor se tornaram amigos de Deus." A Benjamin, o amado filho de Jacó, foi dado o cálice, enquanto seus outros irmãos não receberam nada a não ser trigo. O discípulo amado de Cristo, tão querido pelo coração de seu Mestre, subiu até o Calvário e bebeu de seu cálice. "Você pode beber o cálice que eu estou indo beber?" Desejar que a glória de Deus seja excelente, mas desejar e rezar por ela sem resolver sofrer por coisas tão tolas quanto extravagantes: "Não sabeis o que pedis..." "Nós devemos experimentar muitas dificuldades antes de entrarmos no reino do céu." Para entrar em seu reino vocês devem sofrer muitas cruzes e tribulações.
25. Com razão vocês gloriam ser filhos de Deus. Vocês deveriam se gloriar, pois, também da correção que seu Pai Celestial lhes deu e lhes dará futuramente, porque ele castiga todos seus filhos. Se vocês não estão incluídos entre seus filhos amados, vocês estão - que desgraça! - incluídos entre aqueles que estão perdidos, como aponta Santo Agostinho. Ele também nos conta que, "Aquele que não fica de luto nesse mundo como um estrangeiro e um peregrino não se regozijará no mundo vindouro como um cidadão do céu."
Se seu Pai Celestial não lhe enviar algumas cruzes que valham à pena de tempos em tempos, é porque Ele não mais se preocupa e está furioso contigo; Ele está te manejando como um observador, não mais pertencendo a sua família e merecendo sua proteção, ou como um filho ilegítimo, que, não tendo nada do que reivindicar por uma porção da herança, não merece nem cuidado nem correção.
26. Amigos da Cruz, discípulos de um Deus crucificado, o mistério da Cruz é um mistério desconhecido aos Gentios, rejeitado pelos Judeus, e desprezado pelos hereges e maus católicos. Mas é o grande mistério que vocês devem aprender a praticar na escola de Cristo, e que só pode ser aprendido por Ele. Em vão vocês buscarão por todas as escolas dos tempos antigos um filósofo que assim ensinou; em vão apelarão à luz dos sentidos ou da razão. Somente Jesus pode ensiná-los e fazê-los gostar deste mistério por sua graça toda-poderosa. Esforce-se, então, para se tornar hábil em sua sublime ciência sob a guia de um Mestre tão excelente, e vocês entenderão todas as outras ciências, porque ela contém todas em um grau de eminência. É nossa filosofia natural e sobrenatural, nossa teologia divina e mística, nossa pedra filosofal, que, pela paciência, transforma os metais mais grosseiros em preciosos, as dores mais amargas em prazerosas, pobrezas em riquezas, as mais profundas humilhações em glória. Aquele de vocês que melhor saiba como carregar sua cruz, ainda que fosse um analfabeto, é o mais sábio de todos.
O grande São Paulo retornou do terceiro céu, onde aprendeu os mistérios escondidos mesmo dos anjos, declarou que não sabia nem queria saber de nada a não ser Cristo crucificado. Alegre-se, então, seu pobre Cristão, homem ou mulher, sem quaisquer habilidades escolares ou intelectuais, porque se você souber sofrer alegremente, você sabe mais do que um doutor da Universidade Sorbonne que não sabe como sofrer como você.
27. Vocês são os membros de Cristo, uma honra maravilhosa realmente, porém haveis de sofrer. Se a Cabeça é coroada com espinhos, os membros podem esperar serem coroados com rosas? Se a Cabeça é zombada e coberta com pó na estrada do Calvário, podem os membros esperar serem borrifados com perfumes em um trono? Se a Cabeça não tem travesseiro para descansar, podem os membros esperar reclinarem-se entre plumas e edredons? Seria algo impensável! Não, não, meus queridos Companheiros da Cruz, não enganem-se a si mesmos. Esses Cristãos vocês vêem em todo lugar, vestidos de acordo com a moda, fastidiosos a seu modo, cheios de importância e dignidade, não são verdadeiros discípulos, verdadeiros membros do Cristo crucificado. E se pensarem de outro modo, ofereçam a essa Cabeça coroada de Espinhos a verdade do Evangelho. Quantos assim chamados Cristãos imaginam que eles sejam membros de nosso Salvador quando em realidade são seus traiçoeiros perseguidores, porque embora com a mão eles façam o sinal da cruz, em seus corações eles são seus inimigos!
Se vocês são guiados pelo mesmo espírito, se vocês vivem com a mesma vida como Jesus, sua Cabeça coroada por espinhos, vocês devem esperar somente espinhos, chicotes e pregos; que significa, nada além da cruz; porque o discípulo deve ser tratado como o mestre e os membros como a cabeça. E se lhes for oferecido, como foi a Santa Catherine de Sienna, uma coroa de espinhos e uma de rosas, vocês deveriam, como ela, escolher coroar-se de espinhos sem hesitação e espremê-la sobre suas cabeças, da mesma forma que Cristo.
28. Vocês sabem que são moradas do Espírito Santo e que, como pedras vivas, estão para ser marcados pelo Deus do amor na construção da Jerusalém celestial. E assim vocês devem esperar serem dispostos, cortados e talhados sob o martelo da cruz; de outra forma, vocês permaneceriam pedras brutas, boas para nada a não ser jogadas fora. Sejam cautelosos para que vocês não causem recuo ao martelo quando ele lhes bater; respeite o escultor que está lhe esculpindo e a mão que está lhes pondo forma. Pode ser que esse perito e amoroso artista precise de vocês para ter um lugar importante em seu edifício eterno, ou para ser alguns dos mais belos artífices em seu reino celestial. Portanto, deixe-o fazer o que Lhe apraz; Ele os ama, Ele sabe o que está fazendo, Ele teve experiência. Seus golpes são hábeis e dirigidos com amor; nunca os dá em falso, exceto por sua impaciência.
29. O Espírito Santo compara a cruz algumas vezes a um processo de filtração que separa o grão do refugo e da poeira. Como o grão diante do leque, deixemo-nos ser sacudidos sem resistir; pois o Pai da família está lhe esmiuçando e em breve o colocará em seu celeiro. Outras vezes, o Espírito Santo compara a cruz a um fogo que remove a ferrugem do ferro através da intensidade de seu calor. Nosso Deus é um fogo devorador residindo em nossas almas através de sua cruz para purificá-las sem consumi-las, como ele fez anteriormente com a sarça ardente. De novo, Ele compara a cruz à caçarola de uma fornalha em que o bom metal é refinado e o mau se dissipa na fumaça; o metal é purificado pelo fogo, enquanto as impurezas desaparecem no calor das chamas. E é na caçarola da tribulação e tentação que os verdadeiros amigos da cruz são purificados pela sua constância em sofrimentos, enquanto seus inimigos são varridos para fora pela sua impaciência e murmurações.
30. Meus queridos Amigos da Cruz, vejam diante de vocês uma grande nuvem de testemunhas que, sem dizer uma palavra, provam o que eu tenho dito. Considere, por exemplo, que o justo Abel, que foi morto pelo seu irmão; e Abraão, um homem justo que foi um estrangeiro na terra; Ló, um homem justo, expulso de seu próprio país; Jacó, um homem justo perseguido pelo seu irmão; Tobit, um homem justo golpeado com a cegueira; Jó, um homem justo que ficou empobrecido, humilhado e coberto com feridas da cabeça aos pés.
31. Considerem os incontáveis apóstolos e mártires que foram banhados em seu próprio sangue; as virgens e os confessores que foram reduzidos à pobreza, humilhados, perseguidos ou exilados. Todos eles podem dizer com São Paulo, "Olhem para Jesus, o pioneiro e o mais perfeito de nossa fé," a fé que nós temos nele e em sua Cruz; foi necessário que ele sofresse e depois entrasse, em sua glória, através da Cruz. Do lado de Jesus, vemos Maria sua Mãe, que nunca se manchou com qualquer pecado, original ou atual, apesar do coração puro e adorado trespassado de lado a lado. Se eu tivesse um tempo para enfatizar os sofrimentos de Jesus e Maria, eu poderia mostrar que o que nós sofremos não é nada comparado aos deles.
32. Quem, então, ousaria invocar estar isento da cruz? Quais de nós não se precipitará em se colocar onde sabe que a cruz o aguarda? Quem recusaria em dizer com Santo Inácio de Antióquia, "Podem vir o fogo, a forca, bestas selvagens e todos os tormentos do inferno, que eu posso deleitar-me na possessão de Cristo."
33. Mas se vocês não estão desejando sofrer pacientemente e carregar sua cruz com resignação como aqueles escolhidos por Deus, então vocês terão que carregá-la se lamentando e reclamando como aqueles na estrada da danação. Vocês estarão como os dois bois que puxavam a Arca da Aliança, mugindo; como Simão de Cirene que, totalmente sem vontade, levantou toda cruz de Cristo e não fez nada a não ser reclamar enquanto a carregava. E, no fim, você será como o bandido impenitente, que, do alto de sua cruz, se precipitou no abismo.
Não, sua terra maldita em que nós vivemos não está destinada a nos tornar feliz; nessa terra de escuridão não podemos esperar ver claramente; não há nenhuma tranqüilidade perfeita nesse mar tormentoso; nós nunca podemos evitar conflitos nesse campo de experiência e batalha; nós não podemos escapar de sermos arranhados nessa terra coberta de espinhos. Desejosa ou indesejosamente, todos devem carregar sua cruz, tanto aqueles que servem a Deus e aqueles que não servem. Tenha em mente as palavras do hino:
Escolha uma cruz das três do Calvário; Uma deve ser escolhida, então escolha corretamente; Vocês devem sofrer como um santo ou um bandido arrependido, Ou como um reprovado, em uma tristeza sem fim. Isso significa que se vocês não estão desejando sofrer como o bandido sem arrependimento, terão que beber o cálice da amargura até as sujeiras sem a ajuda consoladora da graça, e vocês terão que sustentar o peso completo de sua cruz, desprovido do poderoso apoio de Cristo. Vocês terão que carregar até a sobrecarga que o demônio acrescentará por meios da impaciência que lhes causará. E depois de participar da infelicidade do bandido impenitente na terra, vocês repartirão sua miséria na eternidade.

2. Nada é tão útil e tão agradável
34. Mas se, ao contrário, vocês sofrem da forma correta, a cruz se tornará um jugo fácil e leve, visto que o próprio Cristo a carregará convosco. Dará asas a vocês para elevá-las aos céus; se tornará o mastro do seu navio, conduzindo-os direta e facilmente ao porto da salvação. Carregue sua cruz pacientemente, e será uma luz em sua escuridão espiritual, porque aquele que nunca sofreu provas é ignorante. Carregue sua cruz alegremente e você ficará completo com o amor divino; porque somente sofrendo podemos residir no puro amor de Cristo. Rosas são encontradas somente entre os espinhos. É a cruz sozinha que alimenta nosso amor de Deus, como a madeira é o combustível que alimenta o fogo. Lembre do belo dito na "Imitação de Cristo ", "Conforme você faça violência a si mesmo, sofrendo pacientemente, assim você progredirá " no amor divino.
Não espere qualquer coisa daquelas pessoas sensíveis e preguiçosas que rejeitam a cruz quando ela deles se aproxima, e que são cuidadosos em não procurar por cruzes. O que eles são senão uma terra inculta que não produzirá nada a não ser espinhos porque não foi trazida à tona, trabalhada e modificada por um lavrador experimentado? Elas são como água podre, que é inadequada tanto para lavar quanto para beber. Carregue sua cruz alegremente e você encontrará nela uma força toda-poderosa que nenhum de nossos inimigos será capaz de resistir, e você encontrará nela um prazer além de tudo aquilo que você já conheceu. Realmente, irmãos, o verdadeiro paraíso terrestre é encontrado no sofrimento por Cristo. Pergunte a qualquer dos santos, e eles lhe contarão que eles nunca experimentaram um banquete mais delicioso para o espírito do que o experimentar os graves tormentos. "Deixe todos os tormentos do demônio virem sobre mim," disse Santo Inácio, o Mártir. "Deixe-me sofrer ou morrer," disse Santa Teresa de Avila. "Não morrer sem sofrer," disse Santa Maria Madalena de Pazzi. "Eu posso sofrer e ser desprezada pelo seu propósito," disse o Beato João da Cruz. E muitos outros têm falado nos mesmos termos, como nós lemos sobre suas vidas.
Meus queridos irmãos e irmãs, tenham fé na palavra de Deus, porque o Espírito Santo nos diz que quando nós sofremos alegremente por Deus, a cruz é a fonte de todo tipo de alegria para toda espécie de pessoas. A alegria que vem da cruz é muito maior que a de um homem pobre que repentinamente herda uma fortuna, ou de um camponês que é levado ao trono; maior do que a alegria de um negociante que se torna milionário; do que a de um líder militar sobre as vitórias que ele obteve; do que a dos prisioneiros libertos de suas correntes. Em resumo, imaginem maior alegria do que a que pode ser experimentada na terra, e entenda então que a felicidade de alguém que tolera seus sofrimentos no caminho da justiça contém, e até sobrepuja, todos elas.

3. Nada é tão glorioso
35. Assim, regozijem-se e fiquem felizes quando Deus lhes favorece com uma de suas seletas cruzes; pois sem se darem conta, vocês são abençoados com o maior presente do céu, o maior presente de Deus. Se assim entendereis, se encarregareis das missas, fareis novenas nos santuários dos santos, tomareis para si longas peregrinações, como fizeram os santos, para obterem do céu o galardão divino.
36. O mundo chama isso de loucura, degradação, estupidez, uma falta de juízo e de senso comum. Eles estão cegos: deixe-os dizer o que gostam. Sua cegueira, que os faz ver a cruz em um caminho humano e distorcido, é uma fonte de glória para nós. Toda vez que eles nos fazem sofrer por sua zombaria e insultos, nos presenteiam com jóias, nos preparando um trono, e nos coroando com loureiros.
37. Mais que isso ... como diz São João Crisóstomo, "Toda a riqueza e honras, cetros e coroas ornadas com jóias de reis e imperadores não podem ser comparadas com o esplendor da cruz." É maior até que a glória de um apóstolo ou evangelista. "Se eu tivesse escolha," continua esse santo homem, iluminado pelo Espírito Santo, "Eu deixaria desejosamente o céu para sofrer pelo Deus do céu. Eu prefereria masmorras e prisões aos tronos do mais alto céu, e as mais pesadas das cruzes à glória dos serafins. Eu avalio a honra do sofrimento mais do que os presentes dos milagres, que por ele tenho o poder de subjugar espíritos maus, abalar os elementos do mundo, parar o sol em seu curso, ou elevar os mortos à vida. São Pedro e São Paulo são mais gloriosos em seus grilhões do que tendo alcançado o terceiro céu ou recebido as chaves do céu."
38. Realmente, não é a Cruz que deu a Jesus Cristo "o nome que está sobre todos os outros nomes, de forma que todos seres nos céus, na terra e no submundo curvariam os joelhos ao Seu Nome?" A glória de alguém que sabe como sofrer é tão grande como o céu, os anjos e os homens, e até o próprio Deus, contemplam-no com alegria como uma vista mais gloriosa. E se os santos no céu desejassem algo, seria retornar à Terra para que suportassem algumas cruzes.
39. Mas se essa glória é tão grande mesmo na terra, o que será no céu? Quem poderia descrevê-la? Quem poderia mesmo entender completamente o peso eterno de glória que um único momento despendido na alegria carregando uma cruz nos oferece? Quem poderia compreender a glória ganha no céu por um ano, e às vezes por toda uma vida, em cruzes e sofrimentos?
40. Vocês podem ficar certos, meus queridos Amigos da Cruz, que algo maravilhoso os espera, visto que o Espírito Santo lhes uniu tão intimamente que todos muito cuidadosamente o evitam. E vocês podem ficar certos, também, que Deus quer fazer tantos santos quantos Amigos da Cruz existirem, se vocês forem fiéis às suas vocações e carregarem de bom grado suas cruzes assim como Cristo o fez.

D. Siga-me
41. Porém, não basta sofrer, o mal e o mundo também têm seus mártires. Nós devemos sofrer e carregar nossa cruz nas pegadas de Cristo: "Siga-me," que significa que nós devemos sofrer carregando-a como Jesus. Para lhes ajudar nisso, há regras a serem seguidas:

As catorze regras
Não procurar cruzes de propósito, nem pela própria culpa
42. 1) Não procure carregar cruzes deliberadamente. Nós não devemos fazer algo errado para produzir algo bom; nem devemos, sem uma inspiração especial de Deus, fazer coisas más de modo a atrair a zombaria a nós mesmos. Havemos que imitar nosso Senhor, sobre Quem foi dito, "Ele fez bem todas as coisas," não por auto-estima ou vaidade, mas para agradar a Deus e triunfar sobre nossos semelhantes. E se você se dedicar a cumprir seus deveres, não lhe faltarão oposições, críticas e zombarias, que serão enviadas pela providência divina sem sua escolha ou exigência.

Olhar pelo bem do próximo
43. 2) Se acontecer de você fazer algo que não é nem bom nem mau em si mesmo, e seu próximo se escandalizar nisso – embora sem razão – se abstenha de fazê-lo por caridade, para evitar o escândalo dos fracos. Um tal ato heróico de caridade será de maior importância no olhar de Deus do que a ação que você estaria fazendo ou pretendendo fazer. Todavia, se o que você está fazendo é necessário ou benéfico para seu próximo, e algum hipócrita ou fariseu se escandaliza sem motivo, remeta a matéria a algum conselheiro prudente para descobrir se é realmente necessário ou vantajoso para eles. Se ele julgar que sim, então continue sem se preocupar com o que as pessoas dizem, enquanto que eles não te detenham. E você pode dizer-lhes o que nosso Senhor disse a alguns de seus discípulos quando eles lhe contaram que os escribas e fariseus ficaram escandalizados, no que ele disse: "Deixai-os. São cegos e guias de cegos".

Admire a virtude sublime dos santos sem pretender imitá-la
44. 3) Embora certos grandes e santos homens tenham procurado e pedido por cruzes, e até pelo seu peculiar comportamento toleraram sofrimentos, desprezo e humilhações, pois bem, vamos nos contentar com a admirável e gloriosa obra do Espírito Santo em suas almas. Humilhai à vista de tal virtude sublime sem tentar alcançar tais níveis por si mesmos. Comparados com aquelas águias ligeiras e leões fortes, nós somos carneiros de coração fraco.

Peça a Deus pela sabedoria da cruz
45. 4) Você poderia e deveria rezar pela sabedoria da cruz, aquele conhecimento da verdade que nós experimentamos dentro de nós mesmos e que pela luz da fé aprofunda nosso conhecimento dos mistérios mais escondidos, incluindo aqueles da cruz. Mas isso é obtido somente através de muito trabalho, grandes humilhações e orações fervorosas. Se necessitais esse espírito generoso que permite levar as cruzes mais pesadas corajosamente; esse espírito gracioso e consolador, que nos capacita, na parte mais elevada da alma a gostar das coisas que são amargas e repulsivas; de seu são e justo espírito que procura somente a Deus; de sua ciência da cruz que abraça todas as coisas; em resumo, desse inesgotável tesouro através do qual aqueles que fazem bom uso dele ganham a amizade de Deus – se você sustentar tal necessidade, ore pela sabedoria, peça por ela continuamente e fervorosamente sem hesitar ou temer não obtê-la, e será sua. Então você entenderá claramente em sua própria experiência como é possível desejar, procurar e encontrar alegria na cruz.

Humilhe-se pelas faltas de alguém, sem se preocupar
46. 5) Se você cometer um erro grave que traga a cruz sobre você, seja inadvertidamente ou mesmo pela sua própria culpa, incline-se sob a poderosa mão de Deus sem atraso, e na medida do possível não se preocupe com isso. Você poderia dizer consigo mesmo, "Senhor, aqui está um exemplo de minha obra." Se há algo errado no que eu tenho feito, aceite a humilhação como um castigo; se não foi pecado, aceite-a como um meio de conter seu orgulho. Freqüentemente, até muito freqüentemente, Deus permite a seus maiores servos, aqueles mais adiantados na santidade, cair nas mais humilhantes faltas de forma a humilhá-los diante de seus próprios olhos e dos olhos dos outros. Ele, assim, nos guarda dos pensamentos de orgulho que poderiam nos mimar por causa das graças que receberam, ou pelo bem que elas produzem de forma que “ninguém possa vangloriar-se na presença de Deus."

Deus nos humilha e purifica
47. 6) Você deve entender que através do pecado de Adão e através dos pecados que nós mesmos cometemos, tudo em nós se torna desprezado, não apenas em sentido corporal, mas também os poderes de nossa alma. E no momento em que nossas mentes corruptas consideram algum dom de Deus em nós, com morosidade e complacência, esse dom, essa ação, essa graça se mancha e se estraga, e Deus não mais olha por ela com favor. Se os pensamentos e reflexões da mente podem, desta forma, corromper as melhores ações do homem e os maiores dons de Deus, quão pior serão os maus efeitos da teimosia do homem, que são até mais corruptos do que aqueles da mente?
Depois disso, não nos estranha, pois, se Deus se apraz em ocultar seus amigos na guarida de sua presença, para que não venham a ser manchados pelos olhos atentos dos homens ou pelo seu próprio conhecimento. E mantê-los ocultos, o que esse Deus zeloso não permite e até faz! Quão freqüentemente Ele os humilha! Quantas faltas lhes procuram! De quais tentações permite que sejam atacados, como São Paulo! Em quais incertezas, escuridão e penumbra lhes deixa! Oh, que admirável é Deus em seus santos, e nas vias que Ele dispõe para conduzi-los à humildade e santidade!

Evite a armadilha do orgulho nas cruzes
48. 7) Não seja como aqueles orgulhosos e soberbos que vão às igrejas, imaginando que suas cruzes sejam pesadas, que eles estejam fortalecidos em sua fidelidade e sinais do amor excepcional de Deus por você. Essa tentação, elevando-se do orgulho espiritual, é mais enganadora, sutil e repleta de veneno. Você deve crer (1) que seu orgulho e sensibilidade faz transformar farpas em tábuas, arranhões em feridas, colinas em montanhas, uma palavra momentânea não significando nada além de um insulto escandaloso ou um desprezo cruel; (2) que as cruzes que Deus lhe envia sejam punições amorosas para seus pecados, especialmente, sinalizando um favor especial de Deus; (3) que quais sejam as cruzes ou humilhações que ele lhe envia são excessivamente leves em comparação com o número e a grandeza de suas ofensas, porque você deveria considerar seus pecados à luz da santidade divina, que não pode tolerar nada que seja poluído, e contra a qual você se coloca; na luz de um Deus sofrendo morte enquanto abrumado de dor por causa de seus pecados; à luz de um inferno eterno que você mereceu novamente; (4) que na paciência com a qual padeceis, mesclais o humano e natural, bem mais do que crê. Testemunhas daqueles poucos caminhos que cuidam de ti, aqueles discretos procurando por simpatia, aquelas confidências que você faz de uma maneira natural aos seus amigos, e talvez a seu diretor espiritual, aquelas especiosas desculpas que você está pronto a dar, aquelas reclamações, ou, se preferir, críticas àqueles que lhe causaram prejuízo, tão bem formuladas, tão caritativamente expostas, esse reconsiderar e se condescender delicadamente em seus males, esse convencimento luciferiano que você é algo grande etc. Não acabaria nunca se houvesse que descrever todas as idas e voltas da natureza desses sofrimentos.

Aproveitar-se mais dos pequenos sofrimentos do que dos grandes
49. 8) Tomar vantagem dos pequenos sofrimentos, até mais do que dos grandes. Deus considera não tanto o que sofremos, mas como nós sofremos. Sofrer uma grande porção, mas duramente, é sofrer como o condenado, sofrer muito, até bravamente, mas por uma causa má, é sofrer como um discípulo do demônio; sofrer pouco ou muito para a causa de Deus é sofrer como um santo.
Se houvesse o caso em que pudéssemos ter uma preferência por certas cruzes, optaríamos pelas menores e discretas, frente as grandes e chamativas. Procurar e pedir por grandes e deslumbrantes cruzes, e até escolher e ficar bem com elas, pode ser o resultado de nosso orgulho natural; mas escolher pequenas e insignificantes e suportá-las alegremente pode somente vir de uma graça especial e uma grande fidelidade a Deus. Assim, faça o que um merceeiro faz em seu negócio: volte tudo para o lucro. Não permita que o menor pedaço da verdadeira Cruz seja perdido, ainda que seja somente uma picada de inseto ou uma picada de alfinete, uma pequena excentricidade de seu próximo ou algum desprezo não intencional, a perda de algum dinheiro, alguma pequena ansiedade, um pequeno desgaste corporal, ou uma leve dor em seus membros. Volte tudo para o lucro, como o dono de mercearia faz em sua loja, e você logo se tornará rico diante de Deus, da mesma forma que o dono da mercearia se torna rico em dinheiro juntando centavo por centavo em seu trabalho. Ao menor grau de aborrecimento, diga: "Obrigado, Senhor. Seja feita sua vontade." E armazene em seguida na memória de Deus, que vem a ser o seu alcance, a cruz que acabou de ganhar, e depois já não pense em mais nada a não ser repetir seus agradecimentos.

Amar a cruz, não com amor emocional, mas com amor racional e sobrenatural
50. 9) Quando a nós é contado o amor à cruz, esse amor não se refere a um amor emocional, impossível a nossa natureza humana. Há três tipos de amor: amor emocional, amor racional, e o amor sobrenatural da fé. Em outras palavras, o amor que reside na parte inferior do homem, em seu corpo; o amor na parte mais alta, sua razão, e o amor na parte mais elevada do homem, no pico da alma, isto é, a inteligência iluminada pela fé.
51. Deus não pede que você ame a cruz com o desejo da carne, posto que a carne é sujeita ao pecado e à corrupção, tudo isso procede do que é corrompido e, por si, não pode estar submetido ao desejo de Deus e sua lei crucificante. Era o desejo desse homem que nosso Senhor se referia no Jardim das Oliveiras, quando ele gritou, "Pai, que se faça a tua vontade e não a minha." Se a menor parte da natureza humana de Cristo, ainda que tão santa, não pudesse amar a cruz continuamente, então com ainda maior razão nossa natureza corrompida a rejeitará. É verdade que nós poderíamos às vezes experimentar até uma alegria sensível em nossos sofrimentos, como muitos dos santos experimentaram; mas essa alegria não vem do corpo, muito embora seja experimentada no corpo. Ela vem da alma, que fica tão estupefata com a alegria divina do Espírito Santo que transborda no corpo. Desse modo, alguém que está sofrendo grandemente pode dizer com o salmista, "Meu coração e minha carne exultam de alegria ao Deus Vivo."
52 Há outro amor da cruz que eu chamei de amor racional e que está na parte mais alta do homem, a mente. Esse amor é inteiramente espiritual; ele brota do conhecimento de quão feliz nós podemos ficar no sofrimento por Deus, e assim poder ser experimentado pela alma, para a qual dá força e alegria interior. Mas embora essa alegria racional e perceptível seja boa, na realidade, excelente, não é sempre necessária para sofrer alegremente pela causa de Deus.
53. E então, há um terceiro tipo de amor, que é chamado pelos mestres da vida espiritual o amor do pico da alma, que é conhecido pelos filósofos como o amor do intelecto. Nesse, sem qualquer sentimento de alegria nos sentidos ou satisfação na mente, nós amamos a cruz que nós estamos carregando, pela luz da pura fé, e nos deleitamos nela, muito embora a parte mais baixa de nossa natureza pudesse estar em um estado de conflito e perturbação, gemendo e se queixando, vertendo lágrimas e desejando por ajuda. Nesse caso, nós podemos dizer com nosso Senhor, "Pai, seja feita a tua vontade e não a minha;" ou como nossa Senhora, "Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo sua palavra."
É com um desses dois mais altos amores que nós deveríamos amar e aceitar a cruz.

Sofrer todas os tipos de cruzes, sem exceção e sem escolha
54. 10) Meus queridos Amigos da Cruz, tomem a resolução de sofrer qualquer tipo de cruz sem excluir ou escolher qualquer pobreza, injustiça, perda, doença, humilhação, negação, injúria, secura espiritual, desolação, experiências interiores e exteriores, dizendo sempre, "Meu coração está pronto, Ó Deus, meu coração está pronto." Fiquem preparados, portanto, para serem abandonados pelos homens e anjos, e aparentemente pelo próprio Deus; serem perseguidos, invejados, traídos, injuriados, desacreditados e abandonados por todos; sofrerem fome, sede, pobreza, nudez, exílio, detenção, forcas e todos os tipos de tortura, muito embora vocês não tenham feito nada para merecer isso.
Finalmente, imaginem que vocês tenham sido privados de suas posses e seu bom nome, e expulso de sua casa, como Jó e Santa Elizabeth da Hungria; que vocês sejam atirados na lama, como Santa Elizabeth, ou arrastados para um monte de estrume, como Jó, todo coberto com úlceras, sem um curativo para suas feridas ou um pedaço de pão para comer que algumas pessoas não recusariam dar a um cavalo ou um cachorro. Imagine que, em acréscimo a todas essas terríveis desgraças, Deus lhes abandone a todas tentações do demônio, sem aliviar sua alma com a menor consolação sensível.
Vocês acreditariam firmemente que esse é o ponto mais alto da glória celestial e da alegria genuína para os verdadeiros e perfeitos Amigos da Cruz.

Quatro considerações para sofrer bem
55. 11) Para ajudá-lo a sofrer bem, adquira o bom hábito de refletir nesses quatro pontos:

a. O olho de Deus
Primeiramente, o olho de Deus, que, como um grande rei do alto de uma torre, observa com satisfação seu soldado no meio da batalha, e elogia sua coragem. O que de Deus atrai a atenção pela Terra? Serão reis e imperadores em seus tronos? Com freqüência Ele nos olha sim com desprezo. Serão as grandes vitórias dos exércitos, pedras preciosas, ou o que quer que seja grande aos olhos dos homens? Não, "o que é altamente pensado pelos homens é repulsivo aos olhos de Deus". O que, então, ele olha com prazer e satisfação, e do que ele pede conta aos anjos e mesmo aos demônios? É aquele que está lutando contra o mundo, contra o demônio, e somente ele pelo amor de Deus, o único que carrega sua cruz alegremente. Como o Senhor disse a Satã, "Não viu sobre a Terra uma maravilha imensa que todo céu contempla com admiração? Já viu meu servo Jó, que está sofrendo por minha causa?"

b. A mão de Deus
56. Em segundo lugar, considerem a mão de Deus, que permite que nos sobrevenham males de toda natureza, desde o maior até o menor. A mesma mão que aniquilou um exército de cem mil homens é a que faz cair a folha da árvore e um cabelo de suas cabeças; a mão que espremeu tão duramente Jó, gentilmente lhes toca com uma tribulação leve. É a mesma mão que faz o dia e a noite, o arco-íris e a escuridão, o bem e o mal. Ele permitiu as ações pecaminosas lhe machucarem; ele não é causa de suas maldades, mas Ele permite as ações.
Se qualquer um, então, lhes trata como Shimei tratou o Rei David, lhes cobrindo de insultos e lhes atirando pedras, digam a si mesmo, "Não nos vinguemos deles. Deixemos que Ele atue, pois o Senhor dispôs que se fizesse dessa maneira. Reconheço que mereço todo tipo de ultrajes, e é com toda justiça que Deus me castiga. Detenham-se mãos!; Refreia-se língua!; não golpeie, não diga uma palavra. É verdade que esse homem me ataca, essa mulher me insulta, mas eles são representantes de Deus, que da parte de sua misericórdia vêm me castigar amistosamente. Não irritemos, pois, sua justiça, usurpando os direitos de sua vingança. Nem menosprezemos sua misericórdia resistindo aos amorosos golpes de seus açoites, para que Ele me entregasse, em vez disso, à justiça absoluta da eternidade."
Por outro lado, Deus em seu infinito poder e sabedoria o sustenta, enquanto aos outros ele aflige. Com uma mão ele entrega à morte, com a outra ele dá a vida. Ele o humilha até o pó e depois o eleva, e com ambas mãos ele alcança uma extremidade de sua vida à oura, com carinho e poder; com carinho, não lhe permitindo ser tentado além de suas forças, com poder, apoiando-o com sua graça na proporção à violência e duração da tentação ou aflição; com poder novamente, por vir dele mesmo, como ele nos conta através de sua Santa Igreja, "sustentá-lo na beira do precipício, guiá-lo a uma estrada incerta, ocultá-lo no calor abrasador, protegê-lo na chuva e do frio que o congela, carregá-lo em seu cansaço, ajudá-lo em suas dificuldades, fortificá-lo em caminhos escorregadios, ser seu refúgio no meio das tempestades " (Oração para uma Viagem).

c. As feridas e sofrimentos de Cristo crucificado
57. Em terceiro lugar, reflitam nas feridas e sofrimentos de Cristo crucificado. Ele mesmo nos contou, "Ó vós todos, que passais pelo caminho: olhai e julgai se existe dor igual à dor que me atormenta, a mim que o Senhor feriu no dia de sua ardente cólera". Vejam com os olhos corporais e através dos olhos de sua contemplação, se sua pobreza, destituição, desgraça, aflição, desolação são como as minhas; olhem para mim que sou inocente e lamente porque vocês são culpados!
O Espírito Santo nos diz, através dos Apóstolos, a contemplarmos Cristo crucificado. Ele nos manda amarmos com esse pensamento, arma mais penetrante e terrível contra todos nossos inimigos que todas as demais armas. Quando vocês são assaltados pela pobreza, má reputação, aflição, tentação e outras cruzes, armem-se com o escudo, peitoral, capacete e espada de dois gumes, que é a lembrança de Cristo crucificado. Vocês haverão de encontrar a solução para todo problema e os meios de conquistar todos seus inimigos.

d. Acima, o céu; abaixo, o inferno
58. Em quarto lugar, olhe pra cima e veja a bela coroa que lhe aguarda no céu se você carregar bem sua cruz. Foi essa recompensa que sustentou os patriarcas e profetas em sua fé e perseguições; que inspirou os apóstolos e mártires em seus trabalhos e tormentos. Os patriarcas podiam dizer com Moisés, "Nós preferiríamos ser afligidos como o povo de Deus, e sermos felizes com Ele para sempre a curtir por um instante os prazeres do pecado." E os profetas poderiam dizer com David, "Nós sofremos perseguição pela recompensa." Os apóstolos e mártires poderiam dizer com São Paulo, "Por nossos sofrimentos como sentenciados à morte, como espetáculo para o mundo, para os anjos e os homens, somos como lixo e anátema do mundo, pelo imenso peso de glória que nos produz a momentânea e ligeira tribulação."
Olhemos para o alto e vemos os anjos, que exclamam, "Cuidai para não apropriar-se da coroa que está marcada com a cruz que você recebeu, se você suportá-la bem, um outro irá carregá-la como convém e a arrebatará consigo. Lute bravamente e sofra pacientemente, nos dizem os santos, e você receberá o reino eterno." Finalmente, escute ao Nosso Senhor, que lhe diz, "Eu darei minha recompensa somente aquele que sofre e é vitorioso pela paciência."
Contemplemos abaixo o lugar onde nós merecemos e que nos espera no inferno na companhia dos bandidos e todos aqueles que não se arrependeram, se nós sofrermos como eles sofreram, com sentimentos de ressentimentos, má vontade e vingança. Exclamemos com Santo Agostinho, "Senhor, trate como sua vontade nesse mundo por meus pecados, contanto que os perdoem na eternidade."

Nunca se queixem das criaturas
59. 12) Nunca se queixe de qualquer pessoa ou coisa que Deus possa usar para afligi-lo. Há três tipos de queixas que nós podemos fazer em tempos de sofrimento. A primeira é a natural e espontânea, como quando o corpo geme e reclama, verte lágrimas e lamentos. Não há falha nisso, desde que, como eu disse, o coração esteja resignado ao desejo de Deus. O segundo tipo de queixa é aquele da mente, como quando nós reconhecemos nossas maldades a alguém que pode nos dar algum alívio, tal como um doutor ou um superior. Poderia haver alguma imperfeição nisso se nós estivéssemos também ávidos para contar nossos problemas, mas não há pecado nisso. O terceiro tipo é pecaminoso: quer dizer, quando nós criticamos nosso semelhante tanto para livrar-se de um mal que nos aflige ou nos vingarmos dele; ou quando nós nos queixamos deliberadamente do que nós sofremos com impaciência e resmungos.

Aceite a cruz unicamente com gratidão
     60. 13) Não importa quando você receber qualquer cruz, receba sempre com humildade e prazer. E quando Deus lhe favorece com uma cruz de alguma importância, mostre sua gratidão de um modo especial, peça a outros que façam o mesmo. Siga o exemplo da mulher pobre que havendo perdido tudo que ela tinha em um pleito injusto – com a única moeda que restava ofereceu para ter uma Missa em ação de graças pela boa fortuna.

Carregar algumas cruzes voluntárias
61. 14) Se você quer se tornar merecedor dos melhores tipos de cruzes, isto é, aquelas que vêm até você sem escolher, então sob a direção de um diretor prudente, tome algumas delas por seu próprio consentimento. Por exemplo, suponha que você tenha uma peça de mobiliário que você seja apreciador, mas que não é de qualquer uso pra você. Você poderia distribuir a alguém que precisasse disso, dizendo para si, "Por que eu deveria ter coisas que não preciso quando Jesus é tão pobre?'
Ou se você tiver um desgosto por um certo tipo de comida, uma aversão a uma prática de alguma virtude particular, ou um desgosto por algum odor desagradável, poderia pegar a comida, praticar a virtude, aceitar o odor, e assim conquistar a si mesmo.
Ou novamente, sua ternura por uma certa pessoa ou coisa talvez seja repugnante. Por que não vê menos essa pessoa ou se mantém distante dessas coisas que lhes seduzem?
Se você tiver uma inclinação natural nunca se perca. Vocês têm uma aversão natural a certas pessoas ou coisas? Então as evite e as domine.
     62. Se em verdade sois verdadeiros Amigos da Cruz, o amor, que é sempre engenhoso, fará vocês encontrarem milhares de pequenas cruzes para enriquecê-los. E vocês não precisarão ter qualquer medo de vanglória, que tão freqüentemente corrompe a paciência que as pessoas exibem sobre cruzes espetaculares. E porque vocês têm sido fiéis nas coisas pequenas, o Senhor lhes estabelecerá um fardo maior, de acordo com sua promessa. Isso quer dizer, fardos de maiores graças que ele lhes proverá, das maiores cruzes que Ele lhes enviará, das maiores glórias que Ele lhes preparará....